quinta-feira, 18 de agosto de 2011

AS MULHERES DO KERALA CONTRA A COCA-COLA

Na Índia, um movimento composto majoritariamente de mulheres impõe derrotas à gigante dos refrigerantes, que explora lençóis freáticos, polui rios e terras e oferece bebida com pesticidas

Expulsa em 1977 pelo governo, a Coca-Cola voltou à Índia em 23 de outubro de 1993, ao mesmo tempo em que outra multinacional norte-americana, Pepsi-Cola, instalava-se no país. As duas empresas possuem atualmente noventa “usinas de engarrafamento”, que são na realidade nada mais que “usinas de bombeamento”: 52 unidades pertencem à Coca-Cola e 38 à Pepsi-Cola. Cada uma delas extrai entre 1 milhão e 1,5 milhão de litros de água por dia.

Justamente em razão de seus procedimentos de fabricação, estes refrigerantes apresentam riscos incontornáveis. Primeiro porque o bombeamento dos lençóis praticado por suas usinas de engarrafamento despoja os pobres do direito fundamental de dispor de água potável. Depois, porque estas usinas lançam dejetos tóxicos que ameaçam o meio ambiente e a saúde pública. Finalmente, porque as sodas são bebidas notoriamente perigosas para a saúde – o Parlamento indiano estabeleceu uma comissão parlamentar mista encarregada de investigar a presença de resíduos de pesticidas.

Exploração poluidora

Durante mais de um ano, mulheres das tribos de Plachimada, no distrito de Palaghat, no Kerala, organizaram uma série de sit-in para protestar contra a secagem dos lençóis freáticos pela Coca-Cola. “Os habitantes”, escreve Virender Kumar, jornalista do diário Mathrubhumi, “levam sobre a cabeça pesadas cargas de água potável que eles precisam buscar longe, enquanto caminhões cheios de refrigerantes saem da usina da Coca”. Esta usina bombeia um milhão de litros d’água por dia e às vezes mais. As mulheres são obrigadas a percorrer de cinco a seis quilômetros para buscar água potável, enquanto, ao mesmo tempo, vêm sair da usina entre oito e nove caminhões carregados de refrigerantes. São necessários nove litros de água potável para se fazer um litro de Coca.

As mulheres adivasi de Plachimada começaram seu movimento logo depois da abertura da usina de Coca-Cola, cuja produção deveria atingir, em março de 2000, 1.224.000 garrafas de Coca-Cola, Fanta, Sprite, Limca, Thums up, Kinley Soda e Maaza. O panchayat local havia concedido, sob algumas condições, a autorização para extrair a água com o auxílio de bombas motorizadas. Mas a multinacional se pôs a extrair, em completa ilegalidade, milhões de litros de água pura em mais de seis poços perfurados por sua conta e equipados com bombas elétricas, ultra-possantes. O nível dos lençóis freáticos baixou drasticamente, passando de 45 metros para 150 metros de profundidade.

Não contente em roubar a água da coletividade, a Coca-Cola poluiu o pouco que restou, despejando as águas emporcalhadas nas perfurações a seco feitas em suas instalações para enterrar os dejetos sólidos. Antes, a empresa depositava os dejetos do lado de fora, embora, na estação das chuvas, sua disseminação nos arrozais, nos canais e nos poços constituísse uma ameaça das mais sérias para a saúde pública. Não é mais o caso atualmente. Mas a contaminação das fontes aqüíferas não é menos grave.
Fábrica de doenças

Essas práticas resultaram na secagem de 260 poços, cuja escavação tinha sido garantida pelas autoridades para servir às necessidades de água potável e para a irrigação agrícola. Nesta região do Kerala – chamada “celeiro de arroz”, em razão de um rico ecossistema dotado de água abundante – os rendimentos agrícolas diminuíram 10%. O cúmulo é que a Coca-Cola redistribui aos camponeses, sob forma de esterco, os dejetos tóxicos produzidos por sua usina. Os testes efetuados, no entanto, mostraram que este esterco tem um forte teor de cádmio e de chumbo, substâncias cancerígenas.

Representantes de tribos e de camponeses denunciaram então a contaminação das reservas aqüíferas e das fontes, além das perfurações efetuadas a torto e a direito que comprometeram gravemente as colheitas. Eles reivindicaram principalmente a proteção das fontes de água potável tradicional, dos mangues e mananciais, a manutenção das vias navegáveis e dos canais, o racionamento da água potável.

Intimada a se explicar sobre seus procedimentos, a Coca-Cola se recusou a fornecer ao panchayat as explicações requeridas. Em conseqüência, este último a notificou da suspensão de sua licença de exploração. De imediato, a multinacional tentou comprar o presidente da comissão, Anil Krishnan, oferecendo a ele 300 milhões de rúpias. Em vão.

Todavia, se o panchayat retirou dela a licença de exploração, o governo do Kerala continuou a proteger a empresa. E, além disso, destina a ela cerca de 2 milhões de rúpias (36 mil euros) a título de subvenção à política industrial regional. Em todos os Estados onde têm usinas, a Pepsi e a Coca conseguem auxílios similares. Tudo isto para bebidas que têm um valor nutricional nulo, em comparação às bebidas indianas tradicionais (nimbu pani, lassi, panna, sattu...).

Ademais, para confeccionar um xarope rico em açúcar, as empresas utilizam o milho, cuja produção já tem 30% destinados para servir de matéria-prima na fabricação industrial de alimentos para gado e de frutose. Isso diminui a quantidade para o consumo humano e, na realidade, priva os pobres de um produto de base essencial, com baixo preço. Em contrapartida, a substituição de edulcorantes extraídos da cana-de-açúcar, como o gur e o khandsari, lesa os paisanos a quem este produtos garantiam rendas e meios de subsistência. Em suma, a Coca-Cola e a Pepsi-Cola têm sobre a cadeia alimentar e a economia um impacto enorme, que não se resume ao conteúdo de suas garrafas.

Em 2003, as autoridades sanitárias do distrito informaram aos habitantes de Plachimada que a poluição da água a tornava imprópria ao consumo. As mulheres já o sabiam há algum tempo e foram as primeiras a denunciar essa “hidropirataria” durante um dharna (sit-in) diante dos portões da empresa.

Seduzido pela iniciativa das mulheres adivasi, o movimento desencadeou nos planos nacional e mundial uma onda de energias solidárias. Sob a pressão desse movimento cada vez mais poderoso e da seca que ainda veio agravar a crise da água, o chefe do governo do Kerala ordenou enfim, no dia 17 de fevereiro de 2004, o fechamento da usina da Coca-Cola. As alianças arco-íris forjadas no início entre as mulheres da região terminaram por englobar o conjunto do panchayat. Por sua vez, o panchayat de Perumatty (no Kerala) registrou no supremo tribunal do Kerala uma queixa contra a multinacional, em nome do interesse público.

 
Nas mãos do Estado

No dia 16 de dezembro de 2003, o juiz Balakrishnana Nair ordenou que a Coca-Cola cessasse os bombeamentos piratas no lençol de Plachimada. Os autos do julgamento valem tanto quanto a decisão em si mesma. De fato, o juiz especificou: “A doutrina da confiança pública repousa antes de mais nada sobre o princípio tácito de que certos recursos como o ar, a água do mar, as florestas têm para a população em sua totalidade uma importância tão grande que seria totalmente injustificado fazer delas objeto da propriedade privada. Os mencionados recursos são um dom da natureza e deveriam ser gratuitamente colocados à disposição de cada um, seja qual for sua posição social. Já que esta doutrina impõe ao governo a proteção destes recursos de tal maneira que todo mundo possa deles tirar proveito, ele não pode autorizar que eles sejam utilizados por proprietários privados ou para fins comerciais [...]. Todos os cidadãos sem exceção são beneficiários das costas, dos cursos d’água, do ar, das florestas, das terras frágeis de um ponto de vista ecológico. Enquanto administrador, o Estado tem por lei o dever de proteger os recursos naturais que não podem ser transferidos à propriedade privada”.

Em suma: a água é um bem público. O Estado e suas diversas administrações têm o dever de proteger os lençóis freáticos contra uma exploração excessiva e, nesta questão, sua inação é uma violação do direito à vida garantido pelo artigo 21 da Constituição indiana. A Corte Suprema sempre afirmou que o direito de gozar de água e de ar não poluídos é parte integrante do direito à vida definido nesse artigo. Em outras palavras, mesmo na falta de uma lei que regulasse especificamente a utilização dos lençóis freáticos, o panchayat e o Estado teriam de se opor à superexploração destas reservas subterrâneas. E o direito de propriedade da Coca-Cola não se estende aos lençóis situados sob as terras que lhe pertencem. Ninguém tem o direito de deles arrogar-se uma grande parte, nem o governo tem qualquer poder para autorizar que entidades privadas extraiam esta água em tais quantidades.

Daí as duas ordens emitidas pelo tribunal: a Coca-Cola cessará de bombear a água para seu uso num prazo de um mês em dias corridos; o panchayat e o Estado garantirão que, passado este prazo, a decisão será aplicada.

Estudo mostra que 60% dos produtos alimentares vendidos são contaminados por pesticidas

A revolta das mulheres, que são o coração e alma do movimento, foi repercutida por juristas, parlamentares, cientistas, escritores... O movimento se estende a outras regiões onde a Coca e a Pepsi bombeiam reservas aqüíferas em detrimento dos habitantes. Em Jaipur, a capital do Rajahstan, depois da abertura da usina da Coca-Cola em 1999, o nível dos lençóis passou de 12 metros para 37,5 metros de profundidade. Em Mehdiganj, uma localidade situada a 20 quilômetros da cidade santa de Varanasi (Benares), ele se aprofundou em 12 metros e os campos cultivados em torno da usina estão desde então poluídos. Em Singhchancher, uma aldeia do distrito de Ballia (a leste do Utar Pradesh), a unidade da Coca-Cola poluiu por um longo período as águas e as terras. Em todo lugar o protesto se organiza. Mas é preciso notar que, com cada vez mais freqüência, as autoridades públicas respondem às manifestações com violência. Em Japiur, por exemplo, a célebre ativista gandhiana Siddharaj Dodda foi presa em outubro de 2004 por ter participado de uma marcha pacífica exigindo o fechamento da usina.

Veneno engarrafado

À secagem dos poços, acrescentam-se os riscos de contaminação por pesticidas. O tribunal supremo do Rajahstan proibiu a venda de bebidas produzidas pela Coca e pela Pepsi, pois estas se recusaram a detalhar uma lista de componentes, enquanto estudos mostraram que elas continham pesticidas perigosos para a saúde . As duas gigantes levaram o caso diante da Suprema Corte da Índia, mas ela rejeitou o apelo e seguiu o tribunal do Rajahstan, ordenando a publicação da composição precisa dos produtos fabricados pela Pepsi e pela Coca. Por hora, essas bebidas permanecem proibidas nesta região.

 
Um estudo feito em 1999 pelo All India Coordinated Research Project on Pesticide Residue (AICRP) mostrou que 60% dos produtos alimentares vendidos no mercado estavam contaminados por pesticidas e que 14% entre eles continham doses superiores ao máximo autorizado. Tal constatação põe em questão o mito arraigado de que as multinacionais privilegiam a segurança e a confiabilidade, dando-lhes uma confiança recusada ao setor público e às autoridades locais. Este preconceito elitista contra a administração pública dos bens e dos serviços contribuiu para a aceitação da privatização da água. Na Índia, como em outros lugares do mundo, este recurso ao privado não permite que se forneça uma água de qualidade a um preço viável.

Democracia da água

No dia 20 de janeiro de 2005, em toda a Índia, correntes humanas se formaram em torno de todas as usinas da Coca-Cola e da Pepsi-Cola. Tribunais populares notificaram aos “hidropiratas” a ordem de deixar o país. O caso de Plachimada prova que o poder do povo pode se impor sobre o das empresas privadas. Os movimentos pela preservação da água vão bem além. Eles dizem respeito também às barragens – e os planos de um grande projeto de ligação fluvial que prevêem o desvio do curso de todos os rios da península indiana suscitam uma oposição crescente. Eles denunciam as privatizações encorajadas pelo Banco Mundial e a privatização do fornecimento de água em Delhi. É preciso notar que a pilhagem não poderia acontecer sem a ajuda de Estados centralizadores e corporativistas.

Esta batalha contra o roubo da água não diz respeito apenas à Índia. A superexploração dos lençóis freáticos e os grandes projetos de desvio de cursos d’água batem de frente com a preservação da Terra em sua totalidade. Para se ter uma idéia da questão, é preciso saber que se cada parte do planeta recebesse o mesmo nível de precipitações, na mesma freqüência e segundo o mesmo esquema, as mesmas plantas cresceriam em toda a Terra e encontraríamos em todos os lugares as mesmas espécies de animais. O planeta é feito de diversidade. O ciclo hidrológico dos planetas é uma democracia da água – um sistema de distribuição para todas as espécies vivas. Sem democracia da água, não pode haver vida democrática.





Vandana Shiva*

Le Monde Diplomatique, março de 2005, ano 6, nº 62

Tradução Fábio de Castro



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